E lá vamos nós… de novo! As matérias “jornalísticas” pagas sobre restrições à cidadania italiana

Entre o fim de semana e hoje (2/8/2021) quatro pessoas me enviaram uma matéria publicada num website de uma rádio do interior do Rio Grande do Sul sobre um “projeto de lei que tramita no Parlamento italiano para restringir a concessão (sic) da cidadania italiana”. Naturalmente, convidam uma “especialista” no tema que não por acaso trabalha com… cidadania italiana.

Já disse e nunca é demais repetir: não há nada de errado em ganhar dinheiro prestando serviços que giram em torno do “ecossistema” da cidadania italiana, seja “montagem de pasta”, seja “cidadania presencial na Itália”, seja busca de documentos, seja facilitando agendamentos, seja processos judiciais no Tribunal de Roma. É plenamente lícito fazer disso seu ganha-pão.

O problema está em fazer terrorismo sem base para cabalar clientes, fazendo-os crer que “o direito à cidadania italiana dos descendentes vai acabar em breve”. Já escrevi vários artigos no passado sobre isso e estão aqui no meu website caso queiram ler. Essas notícias bombásticas são cíclicas.

A “especialista”, que trabalha com isso e dá uma entrevista, dá várias informações equivocadas. Talvez por ignorância, então ela não deveria trabalhar com algo que desconhece, ou talvez de forma deliberada, porque espera atrair clientes, que naturalmente ao ler a matéria e ver lá seu nome, tendem a procurá-la para “mais informações”. Eu tendo a crer na segunda hipótese.

Vamos aos problemas da matéria “jornalística” por tópicos:

  1. A matéria fala em “concessão” da cidadania italiana. Os descendentes de imigrantes italianos nascem italianos. Pelas leis italianas lhes é atribuída a nacionalidade italiana ao nascer. Trata-se, portanto, de uma atribuição de cidadania e não de uma concessão, que por sua natureza é discricionária. A atribuição da cidadania não é discricionária, mas uma consequência inescapável da lei em vigor. Curiosamente, num parágrafo a matéria acerta a questão, dizendo que os descendentes “nascem italianos”, mas depois se esquece no decorrer do texto. (Leia mais sobre atribuição e concessão aqui).
  2. A “especialista” afirma que o tal projeto de lei de 2019 “tem alta probabilidade de ser aprovado”. Isto é uma mentira deslavada. O tal projeto está na mesmíssima gaveta onde foi colocado desde que saiu da mente baldia da sua autora, que é mais uma política que nada entende das leis que regem a cidadania italiana.
  3. A “especialista” então dobra a aposta e tira da manga uma outra mentira repetida por muita gente: “a União Europeia estaria pressionando a Itália para limitar a cidadania dos descendentes“. Para justificar a tal pressão, a “especialista” conta mais uma mentira, que na verdade é um mito super difundido: a Itália é o único país que “permite o reconhecimento da cidadania sem limite de gerações”. Infelizmente, essa besteira é repetida ad nauseam por muita gente. Já escrevi sobre isso inúmeras vezes: nenhuma atribuição de cidadania iure sanguinis tem limite de geração, de país nenhum. O que limita a possibilidade de descendentes de um imigrante terem a nacionalidade do seu ancestral não são as gerações, mas sim situações de perda da cidadania que ocorreram no passado com seus ascendentes. Isso é válido para qualquer nacionalidade: italiana, alemã, espanhola, portuguesa, francesa, britânica, maltesa, grega etc.
  4. Entre tantas sandices, obviamente a “especialista” quer garantir a seus potenciais futuros clientes que há uma forma de se salvaguardar: Corram e protocolem seus pedidos! Quem protocolar a tempo estará a salvo! Segundo ela, “protocolar pedido congela o direito sem risco de retroatividade”. Madonna!

Não caiam nesse tipo de esparrela. Obviamente, eu aconselho sempre a todos aqueles que são descendentes que solicitem seu reconhecimento formal da cidadania. Não há porque deixar para depois. Todavia, esse tipo de terrorismo é vil.

Mesmo com uma mudança legislativa aprovada amanhã, aqueles que nasceram sob a vigência das leis da época do seu nascimento serão sempre considerados italianos à luz do ordenamento jurídico italiano, sendo sempre necessária a verificação formal da posse ininterrupta da cidadania italiana para que aquele cidadão possa gozar do status civitatis, isto é, dos direitos e deveres de ser cidadão italiano.

Uma nova lei poderá prever a perda da cidadania italiana sob determinadas circunstâncias e é isso que a maioria dos países fazem, cada um do seu jeito. Seria muito positivo que a Itália também introduzisse na sua lei de cidadania italiana, que precisa urgentemente ser reformulada, dispositivos mais concretos de perda da cidadania italiana, como eu escrevi num artigo para a Revista Insieme em dezembro de 2020 e que pode ser lido aqui: A Itália transoceânica naufragou. É chegada a hora de repensá-la. No artigo eu explico por que considero oportuna uma mudança na legislação e como eu opino que ela deveria ocorrer.

Para concluir, sempre leia com muito cuidado matérias na imprensa (jornais, revistas, portais de internet, televisão etc.) cujo tema é cidadania italiana. Eu até hoje nunca li uma única matéria que tratasse desse tema de forma séria, a não ser na imprensa especializada da comunidade italiana, tais como a revista Insieme de Desiderio Peron, a revista Comunità Italiana de Pietro Petraglia, a antiga revista Oriundi de Vezio Nardini (que nada tem a ver com a atual revista digital Oriundi). Portanto, caveat emptor!

 

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