A cidadania italiana e os atuais legisladores italianos

Algo que sempre comento em meus artigos e intervenções em fóruns de redes sociais é a baixa compreensão que nossos legisladores têm das normas que regem a atribuição e concessão da cidadania italiana. Pode parecer incrível para muitos, mas desde que acompanho possível mudanças legislativas que possam envolver a cidadania italiana não me lembro de ter visto uma só intervenção de um parlamentar que pareça de fato entender as leis e normas que regem a aquisição da cidadania.

O principal e fatal erro cometido por todos aqueles que vejo opinar sobre cidadania é a ideia equivocada de que os descendentes de emigrantes italianos quando solicitam o reconhecimento da cidadania recebem uma concessão do Estado, quando na verdade a cidadania italiana é transmitida geração a geração por uma atribuição ex lege (por força de lei).

Mas qual é afinal a diferença entre concessão e atribuição da cidadania?

Concessão

Quando existe uma concessão, o status civitatis (status de cidadania) passa a existir a partir de um ato estatal que concede ao indivíduo a cidadania a partir da verificação de requisitos que tenham sido previamente preenchidos. O indivíduo passa a ser cidadão a partir do momento em que tal concessão é efetivada, como é o caso do juramento previsto nos artigos 5 e 9 da Lei 91/1992 (cidadania por casamento e cidadania por residência). Em outros casos não há formalmente o juramento, mas da mesma forma a cidadania só passa a existir a partir de um momento posterior ao pedido.

Quando há a concessão, o Estado pode mudar as regras a qualquer momento. Uma lei aprovada hoje pode mudar todas as regras que bem entender e a partir de sua entrada em vigor passa a valer. Todos aqueles que fizerem um pedido de concessão depois disso deverão se submeter às novas regras.

Quando há a concessão, a nacionalidade é considerada derivada.

Atribuição

Nos casos em que opera a atribuição da cidadania, é a lei no momento do fato (o nascimento ou o casamento) que vale, mesmo que já não esteja mais em vigor. A atribuição é ex lege, ou seja, por força de uma lei que vigorava no momento em que o fato foi concluído. O Estado não pode negar a cidadania nos casos de atribuição, desde que obviamente tenha sido respeitada a lei que vigorava então.

Desta forma, a cidadania italiana dos descendentes de emigrantes italianos é na esmagadora maioria dos casos uma atribuição. O status civitatis nasce com o indivíduo se as condições da transmissões foram satisfeitas. Assim, se um emigrante italiano teve um filho e o vínculo de filiação foi estabelecido na menoridade, seu filho é cidadão italiano e ponto, mesmo que nunca tenha requerido a cidadania italiana formalmente. Se assim não o fosse, seus descendentes hoje não poderiam reivindicar o reconhecimento da cidadania que obrigatoriamente também passa por ele, numa transmissão por atribuição em cascata. E é exatamente por isso que a transcrição de um assento de registro civil é consequência, e jamais a causa, da cidadania italiana.

A atribuição por sua própria natureza é regulada pela lei que estava em vigor quando o indivíduo nasceu, visto que ela opera “ao nascer”. Eu sou cidadão italiano por força da Lei 555 de 1912, que é aquela que estava em vigor no ano em que eu nasci (1978). A nova lei que entrou em vigor em 1992 (Lei 91/1992) não poderia, mesmo querendo, ter retirado meu status civitatis, a não ser se houvesse previsto critérios de perda da nacionalidade e eu – depois de sua entrada em vigor – os tivesse preenchido.

Muitos se perguntam: mas como posso ser considerado cidadão antes do reconhecimento formal e exercer meus direitos? De fato, o reconhecimento é um procedimento administrativo (ou, residualmente, judicial) em que um indivíduo é formalmente declarado a todos os efeitos um cidadão italiano desde o nascimento. Para que aquele status civitatis que nasceu com o indivíduo possa existir no mundo concreto é necessário um procedimento administrativo que o reconheça. E justamente por isso que se usa a palavra “reconhecimento”, pois só se reconhece algo que já antes existia (você só pode reconhecer uma pessoa se a viu pelo menos uma vez antes). A fraseologia mais concreta é “verificação da posse ininterrupta da cidadania italiana”.

Comparativamente, a atribuição da nacionalidade alemã se dá após um procedimento que eles denominam Feststellung, que poderia ser traduzido como “constatação”, ou seja, verifica-se a existência de algo que já está no mundo e que através daquele ato será “confirmado”.

Quando há a atribuição, a nacionalidade é originária (ou “de origem”).

Voltando aos legisladores…

Foi recentemente aprovada uma emenda ao texto de uma proposta de lei que visa à criação de uma “Commissione parlamentare di indirizzo e controllo sull’emigrazione italiana nel mondo”. Seria mais um das tantas comissões que existem no Parlamento italiano. A proposta inclusive do nosso deputado Fausto Longo e sua ficha informativa pode ser verificada neste endereço: https://www.camera.it/leg18/126?tab=&leg=18&idDocumento=0802.

Esta emenda adicionaria no texto da proposta o seguinte:  “che integrino il criterio dello ius sanguinis con la comprovata conoscenza della lingua e della Costituzione italiane quali presupposti per una effettiva appartenenza alla comunità civile e culturale del nostro Paese, anche al fine di prevenire eventuali condotte illegali in connessione con le procedure di concessione della cittadinanza italiana agli italo-discendenti.

Eu destaco novamente este trecho: “concessione della cittadinanza italiana agli italo-discendenti“.

Infelizmente, esse tipo de equívoco permeia todas as manifestações e ideias dos legisladores italianos desde que eu acompanho o tema há muitos anos. Eles acreditam piamente que a cidadania italiana dos descendentes de emigrantes italianos é concedida e não atribuída. Por consequência, fica evidente que eles creem que a cidadania italiana dos descendentes é concedida por um outro artigo e não é atribuída na verdade pelo artigo 1 da Lei 91/1992 (ou peloo artigo 1 da Lei 555/1912 ou pelo artigo 4 do Código Civil de 1865), que são os exatos mesmos artigos que fizeram Totò, Sophia Loren e Daniele Garozzo cidadãos italianos.

Os legisladores acham que existe algum dispositivo na lei de cidadania italiana que nos concede uma graça. Assim, como na mente dos legisladores existe uma concessão, a cidadania italiana dos descendentes é algo que pode ser modificado a qualquer momento e que os efeitos de uma mudança passarão a valer para todos os descendentes assim que uma nova lei (ou uma nova redação da lei existente) entrar em vigor.

É por isso que tantos falam em testes cívicos ou linguísticos ou limitações de geração. Eles opinam sem conhecer os mecanismos que atribuíram (atenção ao verbo no tempo passado) a cidadania aos descendentes de emigrantes italianos.

Devemos nos preocupar?

Apesar de confiar muito na tradição italiana de respeito aos princípios do melhor Direito, eu de fato me preocupo com esse despreparo neste ponto específico que tanto nos afeta. Preocupa-me constatar que parece não haver uma assessoria parlamentar efetiva que possa corrigir essas deformações antes que nasçam. Eu espero que no momento em que de fato esse tipo de teratologia puder alçar voos maiores, ou seja, em que isso chegar mais adiante a ponto de efetivamente causar estragos, que os órgãos internos de verificação do Parlamento deem um alerta e essas questões sejam corrigidas a tempo de não ser necessário submeter um texto normativo a controles de tribunais superiores.

Todavia, apesar de confiar nisso eu creio que cabe às comunidades ítalo-descendentes no mundo, sobretudo no Brasil, na Argentina e nos Estados Unidos, criar mobilizações para que possamos ter nossa voz ouvida. Se conseguiremos é outra questão.

As tão estimadas transcrições…

E por fim, quero fazer novamente um comentário sobre a questão das transcrições, ato administrativo que alguns – erroneamente – divulgam ser a “origem da cidadania”. Essa crença é absolutamente incompatível com a ideia da atribuição (reconhecimento) da cidadania italiana por filiação. Um bisneto de um emigrante italiano não obtém o reconhecimento da cidadania italiana porque é “bisneto de italiano”. Ele a obtém por que é “filho de um italiano”, exatamente como dizem as leis que se sucederam no tempo (Código civil italiano de 1865, Lei 555/1912 e Lei 91/1992). A transmissão ex lege da cidadania geração a geração se dá sem nenhuma necessidade de transcrições. Tanto é assim que há mais de vinte anos, somente os assentos de registro civil do requerente são transcritos na Itália, enquanto que os assentos que compõem o procedimento de verificação da cidadania permanecem nos autos (agli atti), sem a necessidade de ser transcritos, mas todos ali – do dante causa emigrado da Itália até o requerente são cidadãos italianos.

Se o avô nascido em Piracicaba e o pai nascido em Campinas não fossem italianos, o requerente – o bisneto do emigrante italiano – não poderia ser considerado cidadão italiano. E o avô e pai não precisam de registros transcritos para serem considerado ex lege cidadãos italianos. Tais constatações são diretamente originadas das próprias leis.

Aqui abaixo vocês podem ver um trecho do Massimario per l’ufficiale dello stato civile (ed. 2014) editado pelo Ministero dell’Interno contido na página 46:

Traduzo: “A aquisição, a perda e a reaquisição da cidadania italiana não ocorrem em consequência de uma verificação ou de um atestado emitido pelo prefeito, pela autoridade diplomática ou consular, ou pelo Ministério do Interior, que são somente atos de reconhecimento de uma aquisição, de uma perda ou de uma reaquisição já ocorridas por força de declarações ou eventos aos quais a lei relaciona os efeitos acima referidos.”

Incrivelmente, já vi esse trecho sendo utilizado para fundamentar um argumento que é o oposto contrário do seu real sentido! Todavia, esse trecho diz claramente que o procedimento administrativo apenas reconhece os efeitos já concluídos no tempo decorrentes da simples determinação da lei, oriunda da simples correlação entre causa e efeito. Quando se refere à facti species da cidadania italiana iure sanguinis, a causa e o efeito são respectivamente o nascimento e a atribuição da cidadania. Portanto, a aquisição da cidadania dá-se antes da transcrição e não depois dela. Repetindo o que já disse Gerardo Zampaglione, a transcrição não tem, de fato, efeitos constitutivos, mas certificativos. Não é através da transcrição que se obtém a cidadania italiana; mas é a posse da cidadania italiana que leva à transcrição.

E se tudo que eu já escrevi sobre o tema for pouco, adiciono uma outra: o telegrama 3393 de 3 de maio e 1983 que o Ministério das Relações Exteriores da Itália enviou a suas representações consulares (pode ser lido aqui https://www.esteri.it/mae/normative/normativa_consolare/serviziconsolari/stato_civile/tlg3393c_1983.pdf):

Si ricorda ad ogni buon fine che la trascrizione non ha effetti costitutivi ma certificativi di “status” e che pertanto non è da essa che discende la cittadinanza italiana ma è dalla cittadinanza italiana che essa discende.

Em bom português:
Lembramos para vossa boa informação que a transcrição não tem efeitos constitutivos, mas certificativos de “status” e que, portanto, não é dela que descende a cidadania italiana, mas é da cidadania italiana que ela descende“.

Surpreende-me sempre, mas há quem consiga ler tudo isso e dizer que eu estou errado, sempre apresentando “provas” cujo conteúdo em nada se refere à questão.

O discurso de que “só é cidadão depois da transcrição” não é apenas errado, como de certa forma perigoso, visto que dá tons de concessão ao que na verdade é atribuição. Se nos permitimos imaginar que só existe o cidadão após a transcrição, transformamos a cidadania originária em derivada, visto que passamos a existir como italianos não no nascimento, mas só depois de um ato administrativo concreto. Tal concepção encaixa-se perfeitamente nos pressupostos de uma concessão e ceder a essa inverdade nos diminui e nos enfraquece, deixando flancos vulneráveis para a ideia de que a cidadania italiana dos ítalo-descendentes pode ser “cancelada” ao bel-prazer do legislador de turno.


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