A importância do “repertório enciclopédico” em genealogia

Em qualquer atividade de caráter intelectual precisamos utilizar nosso “repertório enciclopédico” em maior ou menor medida. Um bom estudo genealógico, portanto, também necessita de um bom repertório enciclopédico por parte do praticante de genealogia, seja ele um genealogista experiente ou um curioso iniciante.

Mas que é afinal o “repertório enciclopédico”? Uma outra expressão que poderia ajudar na compreensão seria “bagagem cultural“, ou seja, os conhecimentos que acumulamos lendo, estudando, assistindo a documentários, palestras, aulas etc. Em genealogia, nosso repertório enciclopédico é a todo momento “requisitado”, mas só nos damos conta quando nos deparamos com um problema ou quando posteriormente surge um erro, seja aquele que nós mesmos depois identificamos, seja aquele que outras pessoas um dia identificarão.

Uma obra genealógica é um trabalho editorial, ou seja, exige do seu executor uma série de competências para que surja uma obra bem feita. Genealogia não é, como infelizmente muitos pensam, “copiar registros e elaborar uma árvore genealógica”. Um genealogista de nível intermediário já sabe que os registros inexoravelmente serão contraditórios entre si e trarão muitos desafios. Um genealogista não é um copista!

Por trabalho genealógico (ou obra genealógica) entende-se uma série de “produtos”, tais como uma árvore genealógica, um tratado genealógico, um relatório familiar, um livro, um artigo etc.

Infelizmente, a ideia propagada em projetos de indexação do “escreve-se fielmente o que se lê” está provocando grandes estragos no mundo da genealogia. É claro que a indexação em massa (“massificada”) deve se fiel às informações que estão sendo extraídas de um determinado registro. Não é isso que questiono. O problema está em transpor essa ideia para a obra genealógica, que – como eu disse acima – é um trabalho editorial, não mais sendo uma fonte primária, mas sim secundária. Fontes secundárias, por sua própria natureza, “envolvem generalizações, análises, sínteses, interpretações, ou avaliações da informação original” (texto da Wikipédia, com minha colaboração).

O repertório enciclopédico compõe-se das ferramentas intelectuais usadas pelo editor do trabalho genealógico para “processar” as fontes primárias e construir uma obra bem feita. Um exemplo evidente desse processo de editorialização em genealogia é a grafia dos nomes, sejam prenomes ou sobrenomes, e também a escolha do “nome principal” que será usado na representação principal de uma determinada pessoa. Se uma pessoa utilizou dois, três ou mais nomes durante a sua vida, qual utilizaremos para representá-la univocamente no nosso trabalho genealógico? E neste momento que fica claro que genealogia é um trabalho editorial e não de simples cópia. Mas isso eu abordarei num outro artigo futuramente.

Voltando à questão do repertório enciclopédico, quero oferecer aqui um exemplo prático de uso do repertório enciclopédico numa obra genealógica:

Deparei-me com uma árvore genealógica em que um indivíduo constava como nascido em 8 de janeiro de 1907 em Jales, município situado no noroeste extremo do estado de São Paulo. Quando bati os olhos naquela informação eu já sabia que ela estava errada. E por quê? Porque Jales não existia em 1907. E não porque fosse um povoado ou um distrito de outro município, mas porque Jales em 1907 era literalmente “só mato”. Não existia nada naquela região em 1907. Aquele território fazia parte de áreas despovoadas (ou melhor, escassamente povoadas por população indígena) do município de São José do Rio Preto, cuja superfície englobava àquela época uma boa parte do quadrante noroeste do estado de São Paulo.

Ao verificar o registro de onde o editor havia tirado aquela informação, ou seja, ao analisar a fonte primária, pude logo entender o que o levou ao erro: a transcrição da informação a partir de um texto manuscrito, o exercício “paleográfico” (mesmo em se tratando de um registro de 1929 considero que seja um trabalho de paleografia, sobretudo para gerações mais jovens que pouco conhecem a letra cursiva).

É possível ver acima um trecho do talão de registro de nascimento em que consta o local de nascimento do noivo: “Elle nascido em ….“? O editor interpretou o local como “Jales”, escolha paleograficamente muito questionável, mas o que lhe prejudicou não foi somente um erro paleográfico, mas uma falha no emprego do repertório enciclopédico, seja por falta dele, seja por pressa. Como eu mencionei acima, Jales nem mesmo existia em 1907, tornando impossível que um filho de italianos tivesse lá nascido em 1907.

Um genealogista com bom repertório enciclopédico e boa competência paleográfica sabe com facilidade que ali está escrito “Jahú”, que é a grafia arcaica de “Jaú” (infelizmente ressuscitada por um “prefeiteco” com especial apreço pela “grafia da vovó”, como já diria o saudoso jornalista Marcos de Castro, que nos deixou em 2018.  Aliás, ainda escreverei sobre a balbúrdia ortográfica da língua portuguesa e seus reflexos na genealogia, sobretudo a absurda, e infelizmente muito difusa, insistência em empregar grafias arcaicas de topônimos e antropônimos em obras genealógicas).

Exemplos do emprego do “repertório enciclopédico” em genealogia não faltam. E a falha do uso do repertório enciclopédico não afeta apenas obras de caráter genealógico, mas qualquer trabalho intelectual. Não é raro encontrar dissertações e teses acadêmicas em que seu autor erra por não usar o repertório que tem ou porque simplesmente não o tem. Dou um exemplo: uma dissertação de mestrado sobre a educadora e expoente feminista brasileira Leonor Castellano intitulada “História de uma “boa feminista”: trajetória intelectual de Leonor Castellano em Curitiba, 1924-1967“.

Na página 23, ao introduzir informações biográficas básicas de Leonor Castellano, a autora da dissertação escreve:

“Leonor Castellano, chamada de Nola pelos amigos, nasceu em Curitiba (PR) no dia 25 de outubro de 1899. Era filha de Francisca Wienonewski Castellano e Francisco Castellano, ambos portugueses, e tinha irmãos e irmãs, dos quais descobrimos apenas os nomes de duas: Olga e Gioconda.”

Ora, não é preciso ser genealogista para deduzir que os pais de Leonor, Francisco Castellano e Francisca Wienonewski, dificilmente seriam portugueses. Ao fazer essa afirmação a autora falha em repertório enciclopédico, visto que Wienonewski claramente não é um sobrenome português e Castellano também dificilmente o seria (se o fosse, estaria com a grafia Castelhano). E falha sobretudo ao não verificar a informação cotejando as devidas fontes, visto que não há nada sobre Leonor que possa sugerir que seus pais fossem portugueses. Bastaria que a autora tivesse feito uma simples pesquisa no registro de nascimento de sua biografada para saber com muita facilidade que seu pai era italiano e sua mãe era polaca. De onde ela teria tirado que eram portugueses? “Boh…”.

Posso entender que a origem dos pais seja um dado quase irrelevante para o desenvolvimento da dissertação sobre Leonor Castellano, mas como genealogista eu obviamente me surpreendo com um erro tão flagrante. E são muitos os “erros genealógicos” em obras biográficas. Para citar alguns casos, temos as biografias do Zé do Caixão (caso que eu já tratei num post no Facebook), das irmãs Cacilda Becker e Cleide Iaconis ou do simpático Kid Vinil (Antonio Carlos Senefonte). O caso das irmãs Iaconis e do Kid Vinil é o mesmo: sobrenomes que “soam” gregos, mas que são italianos… E como ser italiano no estado de São Paulo era “carne de vaca” (isto é, algo muito comum), muitas vezes os próprios biografados fantasiavam sobre suas origens, talvez para se sentirem mais “especiais”. Um dia também espero escrever sobre algumas origens genealógicas fantasiosas, desde Wagner Tiso que inventou para si uma origem cigana, até a fajuta origem italiana de Maradona, que não há meios de desaparecer e cujas fontes baseiam-se no pitoresco fato de que o sobrenome dele “parece italiano”.

Espero ter conseguido explicar como o “repertório enciclopédico” é essencial para um bom trabalho genealógico e como é importante saber reconhecer quando nossa bagagem é insuficiente para uma determinada tarefa, levando-nos a estudar e aumentar nosso repertório antes de cometer erros absolutamente evitáveis.


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