As cíclicas notícias sobre mudanças na lei de cidadania

Hoje o primeiro-ministro da Itália, Giuseppe Conte, fez um discurso na Câmara dos Deputados em ocasião do voto de confiança para a nova formação do Governo. Uma breve manifestação sobre a lei da cidadania pôs o “mundo da cidadania” novamente em polvorosa.

Ciclicamente somos brindados com ameaças de mudanças na legislação que regula o reconhecimento da cidadania italiana. Eu vivo isso há mais de vinte anos. Pouco anos depois da atual Legge 91/1992 ter entrado em vigor já começaram os rumores de mudanças e a cidadania iure sanguinis sempre a um triz de sofrer limitações.

Antes os boatos vinham uma vez por ano. Depois do advento da internet e da ditadura dos cliques e das métricas de popularidade o ciclo dos rumores foi ficando cada vez mais curto. Atualmente, a frequência parece ser trimestral.

Em julho passado, o senador Vito Petrocelli do Movimento 5 Stelle declarou durante uma sessão plenaria do CGIE (Consiglio generale degli italiani all’estero) que o reconhecimento da cidadania iure sanguinis deveria ser “condicionado” à superação de “testes de língua italiana e educação cívica e ordenamento constitucional”. Segundo ele isso equipararia a legislação da Itália à de “quase todos os países da União Europeia”.

Assim, o senador Petrocelli entrava para o rol de políticos italianos que não têm nenhuma vergonha de dizer publicamente besteiras em matéria de cidadania. E não se trata apenas de declarações irresponsáveis, mas que também propagam falsidades. Nenhum país europeu prevê qualquer tipo de teste para o reconhecimento da cidadania iure sanguinis. Aliás, nenhum país do mundo prevê. E por um simples motivo: o reconhecimento da cidadania originária (desde o nascimento) não pode prever, ipso facto, nenhum tipo de requisito condicionante. Não devemos confundir reconhecimento de cidadania originária com o conceito da “naturalização facilitada” existente em alguns países, mesmo que o status de cidadão retroaja ao nascimento. Se há requisitos condicionantes, não é uma atribuição/reconhecimento, mas uma concessão.

Mas voltemos ao dia de hoje. O primeiro-ministro Conte disse em seu discurso:

“Também a lei sobre a aquisição da cidadania italiana por parte de cidadãos residentes no exterior parece meritória de uma revisão, para eliminar elementos discriminatórios e introduzir ulteriores critérios: nos espera um trabalho intenso, precisamos de ideias, determinação e visão para prosseguir sem incertezas, com a consciência que temos uma ocasião única para melhorar o País em que vivemos”.

O que podemos entender sobre esse trecho do discurso? Na prática muito pouco. Ele afirma que a lei merece uma revisão, mas depois acrescenta duas platitudes cujo conteúdo é nulo, no melhor estilo do “poltiquês” que fica bonito nos discursos.

Como repito há anos, o reconhecimento da cidadania iure sanguinis não é uma concessão do Estado. Não é um presente e não é um ato discricionário. É uma consequência direta de um dispositivo legal que o Estado não pode negar se estão presentes os dois requisitos básicos para a cidadania por filiação: nascer e ser reconhecido como filho pelo pai (ou mãe) na menoridade.

As pessoas que têm o direito ao reconhecimento da cidadania italiana já nasceram italianas. O fato jurídico é o nascimento. O ato jurídico é a atribuição ope legis (por obra da lei). Este ato jurídico entre esse cidadão e o Estado italiano já está concluído no tempo. É ato jurídico perfeito. O reconhecimento é apenas um trâmite formal de verificação. Tanto é assim, que tecnicamente o reconhecimento é denominado “verifica del possesso ininterrotto della cittadinanza italiana”.

Outra prova desse status de cidadão italiano já presente em cada um de nós é a exigência da “attestazione di non rinuncia alla cittadinanza italiana”. Como eu explico no artigo “Por que pedem a non rinuncia do meu avô e do meu pai se eles nasceram no Brasil e nunca pediram a cidadania italiana?”, o pedido de “non rinuncia” é feito para todos os cidadãos na linha de ascendência do requerente por que rigorosamente todos eram cidadãos italianos ao nascer, mesmo que nunca tenham feito pedido formal de reconhecimento da cidadania italiana. Ninguém é italiano porque o bisavô era italiano, mas porque o pai ou a mãe eram italianos quando o requerente nasceu.

Muitos confundem esse conceito com “direito adquirido”. Isso nada tem a ver com direito adquirido. Trata-se de um status pessoal já existente, já consolidado. O trâmite de reconhecimento apenas formaliza um status já existente. Portanto, uma nova lei de cidadania que eventualmente estabeleça limites de geração ou institua requisitos como testes linguísticos só poderá afetar aqueles que nascerem após a entrada em vigor dessa nova lei.

Como preveem os bons princípios do Direito e próprio Código Civil italiano (tanto o atual de 1942, quanto o primeiro de 1865),  “a lei só dispõe para o futuro, ela não tem efeito retroativo” (“la legge non dispone che per l’avvenire: essa non ha effetto retroattivo“). Existem limitadas exceções ao princípio da irretroatividade somente em âmbitos alheios ao Direito Civil, no qual se inclui o direito à cidadania.

Isto posto, se a Itália pretende continuar a ser um Estado democrático e de direito, jamais poderá cassar a cidadania daqueles que já a possuem fazendo retroagir um dispositivo legal novo. É simplesmente impensável que a Corte Constitucional italiana coadune com tamanho absurdo mesmo que o Parlamento viesse a aprovar uma norma teratológica, o que eu também duvido muito.

Em toda a história jurídica italiana ligada à cidadania, a lei nunca retroagiu para solapar direitos. Nem mesmo uma única vez. Todas as reformas na lei de cidadania sempre vieram a reconhecer o direito de mais cidadãos e nunca retirar daqueles que já o possuíam. 

Portanto, não se deixem levar pela histeria e pelo medo. E, sobretudo, não se deixem levar pela opinião dos “urubus da cidadania alheia”, que são pessoas que cultivam o mórbido prazer em assustar as pessoas. Há também a categoria daqueles que pretendem lucrar com o medo, pois vendem serviços e ganham quando as pessoas acham que existe perigo iminente da perda do seu direito e depois correm para contratar prestadores de serviço.

Uma nova lei poderá trazer novos dispositivos de perda de cidadania, mas sempre haverá um prazo para que ele tenha efeito. Por isso é tão importante não apenas ser “italiano de passaporte”, mas também um italiano bem informado e consciente dos próprios direitos.


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