O obstrucionismo patrocinado por um órgão de Estado

Graças à sempre diligente e atenta advogada Daniele Mariani, ítalo-brasileira efetivamente advogada na Itália e não captadora “de luxo” de serviços advocatícios para advogados de verdade, como fazem algumas figuras tétricas que “si spacciano per avvocati” por aí, chegou ao meu conhecimento o documento que vocês podem ver nas duas imagens.

Trata-se de circolare publicada no último dia 8 de julho de 2019  pela Prefettura da província de Como (Lombardia) cujo assunto é a “Iscrizione anagrafica di cittadini brasiliani richiedenti la cittadinanza iure sanguini“, ou seja, a “inscrição anagrafica de cidadãos brasileiros que vão requerer a cidadania iure sanguinis”. Primeiro faço um esclarecimento sobre a terminologia.

Prefettura” na Itália não é a nossa prefeitura, ou seja, o governo municipal. Na Itália, Prefettura é um órgão da administração estatal, que na Itália é bastante centralizada, que representa o Estado em cada uma das mais de cem províncias. A Prefettura não é um órgão provincial, mas um braço decentralizado do Estado. É por isso que as prefetture também são chamadas de “Ufficio territoriale del Governo”. 

Já  “iscrizione anagrafica” é um cadastro de habitantes em determinado município (os famosos comuni), algo que não existe no Brasil. Na Itália, todo município tem um cadastro preciso das pessoas que residem em seu território, nome por nome, casa por casa.

Feita essa explicação, passo ao fato: a Prefettura di Como publicou uma circular para todos os municípios em sua província com esclarecimentos sobre sob quais condições um cidadão brasileiro que queira reconhecer sua cidadania italiana, com a qual nasceu, o que é importante sempre frisar, possa ter sua “iscrizione anagrafica” efetivada em cada município.

Mas afinal, o que diz a circular? Essa circular oficializa o obstrucionismo e dá ferramentas aos municípios para que neguem sem grandes cerimônias a residência para ítalo-brasileiros que queiram estabelecer residência em comuni da província de Como.

Baseados em interpretações absolutamente subjetivas sobre o conceito de residência, qualquer oficial de anagrafe poderá recusar o pedido de residência a não que o ítalo-brasileiro consiga comprovar algo que evidentemente é impossível, que é ter uma rede de relações interpessoais, de trabalho e comunitárias num município onde acabou de chegar.

Sempre considerei que a Circolare K.28.1 um instrumento normativo péssimo. A circular já tem 28 anos e é anterior à atual lei de cidadania, que é de 1992. Todavia, apesar dessa falha de origem, nada permite que o Estado pratique obstrucionismo puro apenas por conveniência para se livrar de um “problema”. Se existe a possibilidade legal de requerer a cidadania italiana na Itália, que seja respeitada a norma em vigor. Criar obstáculos subjetivos com a clara intenção de não permitir que ítalo-brasileiros possam ter acesso a esse direito, que lhes é na prática negado devido ao mau funcionamento dos consulados italianos no Brasil, é ultrapassar a linha do bom senso.

Faria melhor a Prefettura di Como em solicitar ao Ministero dell’Interno que crie um grupo de estudo e que publique uma nova circular o mais rapidamente possível com novas regras que deem conta da atual situação que vivemos. Urge retirar o requisito de residência legal e criar uma taxa para que os municípios possam tramitar esses pedidos de forma eficiente. É justo que eles sejam remunerados para suportar uma carga extra de trabalho.

É mais do que óbvio que não é adequado fundamentar o pedido de reconhecimento da cidadania em residências evidentemente provisórias, mas não é criando obstáculos patrocinados por um órgão de Estado que se resolve o problema.

E outro fato grave: por que a circular centra seu fogo contra “cittadini brasiliani“? Embora no texto o prefetto procure mitigar essa clara discriminação citando “outras nacionalidades estrangeiras”, fica claro que o objetivo é combater o fenômeno oriundo dos descendentes de italiano do Brasil.

Vou imediatamente comunicar essa situação gravíssima ao subsecretário Sen. Ricardo Merlo, ao deputado Luís Lorenzato e outros parlamentares que talvez ainda possam voltar do sono profundo em que se encontram.

 


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