A cidadania por direito de sangue e a mentira do excepcionalismo italiano

Quando se fala em cidadania italiana é recorrente que se espalhe a ideia de uma Itália generosa com seus descendentes pelo mundo. Esta é uma verdade irrefutável. A Itália de fato tem uma legislação bastante generosa com seus descendentes, talvez a mais generosa de todas até onde alcança meu conhecimento.

Existem muitos obstáculos: normativa lacunosa e ambígua, filas com tempos bíblicos, loterias de agendamentos impossíveis. Todavia, isso não nos impede de sermos gratos pelo reconhecimento que o Estado italiano tem de seus descendentes.

Diferentemente do que pensam muitos “italianos DOC”, que é como eu denomino os italianos nascidos e crescidos na Itália, com pouca vivência e conhecimento da emigração histórica (a famosa “diáspora italiana), o reconhecimento amplo da cidadania a seus descendentes é um trunfo que a Itália tem, uma fortaleza. No mundo moderno é o que se chama de “asset” ou também uma forma de exercer o “soft power”.

Os descendentes que são reconhecidos formalmente italianos desde que nasceram raramente são um fardo ao Estado italiano. Muito pelo contrário, aportam mais do que recebem financeiramente. Existe uma ilusão nos “italianos DOC” de que os descendentes querem sugar recursos da Itália. Isso simplesmente não existe como estatisticamente facilmente se comprova.

Feita esta introdução, quero falar do suposto excepcionalismo italiano no que se refere ao reconhecimento da cidadania a seus descendentes. Muitos políticos e comentaristas de ocasião têm a ideia de que a Itália está sozinha no mundo ao reconhecer a cidadania por direito de sangue a seus descendentes sem exigir contrapartidas. Isso é simplesmente uma mentira. Vários outros países o fazem, como a Alemanha e Portugal. Esses países têm normativas diferentes, mas no mecanismo da atribuição da cidadania desde o nascimento não existe nenhum condicionante, nem conhecimento da língua, nem ligação à comunidade nacional.

Ao leitor é importante que fique claro que existem basicamente dois mecanismos empregados por um Estado para considerar uma pessoa seu cidadão nacional. Existe a atribuição da nacionalidade, que é SEMPRE incondicional, e existe a concessão da nacionalidade, que sempre pressupõe o preenchimento de certos requisitos.

Alguns confundem, não sei se de maneira proposital ou por ignorância, o dispositivo da “naturalização facilitada”, adotado por alguns países, com o reconhecimento da cidadania iure sanguinis. No primeiro caso trata-se de concessão e no segundo de atribuição. Na naturalização facilitada é possível estabelecer requisitos aos requerentes, na atribuição, não.

Um dos grandes problemas da discussão sobre mudanças na normativa da cidadania italiana reside no triste fato de que os atores do jogo político não têm a menor ideia do conceito de nacionalidade e dos mecanismo que a regem. Com muita frequência dizem bobagens homéricas e não entendem princípios básicos da transmissão da cidadania iure sanguinis, além de mentir quando dizem que outros países europeus estabelecem testes linguísticos para a atribuição da nacionalidade iure sanguinis.

Nós cidadãos italianos nascidos no exterior já nascemos italianos. O pedido de reconhecimento é apenas um ato administrativo que formaliza a posse ininterrupta da cidadania italiana desde nosso nascimento. Não nos concedem a cidadania, já somos cidadãos. Não é um regalo, é um status inerente ao ser. Não é legalmente possível estabelecer condições para a cidadania iure sanguinis como prevista pela legislação italiana. É uma impossibilidade ontológica.

Se um decreto ou uma lei estabelecerem um teste linguístico ou cultural para o reconhecimento da cidadania iure sanguinis tal medida legislativa tem de ser derrubada pela Corte di Cassazione caso a Itália ainda quiser ser um Estado de Direito e pretenda continuar a honrar e respeitar a sua história secular.

O Código Civil italiano de 1865 já trazia no Artigo 2 de suas disposições iniciais sobre a “publicação, interpretação e aplicação das leis em geral”:

“A lei só cria dispositivos para o futuro. A lei não tem efeitos retroativos.”

Infelizmente, assim como no Brasil, a qualidade dos legisladores na atualidade é baixíssima. Para dar apenas dois exemplos, no Brasil já tivemos um Rui Barbosa e na Itália já tivemos um Francesco Saverio Nitti. Salvo raras exceções, hoje temos… bom, deixa para lá.

Que a lei da cidadania precisa de mudanças é evidente, mas um país em que vige o Estado de Direito só pode estabelecer novas regras para novas situações. É um princípio básico do convívio numa sociedade democrática em que existe segurança jurídica. Se hoje numa canetada anulam uma condição que por lei já nasceu comigo, qual é o limite para o que se pode fazer?

Aqueles que já nasceram italianos serão sempre italianos e podem formalizar seu status a qualquer tempo. Uma nova lei pode até mesmo criar mecanismos de perda da nacionalidade por “ausência”, que seria grosso modo, uma “falta de uso” que se dá quando um cidadão que vive fora do território nacional se desconecta por completo de seu país e possui uma outra nacionalidade. Muitos países têm dispositivos desse tipo, como Alemanha, Espanha, Países Baixos, Bélgica, Suécia etc. Que se legisle, mas para situações futuras.

Leio hoje declarações do senador Vito Petrocelli do Movimento 5 Stelle em que ele diz que “Prevediamo il riconoscimento e il riacquisto subordinati al superamento di un test, per equiparare la nostra normativa a quella di quasi tutti i paesi UE”. Tal declaração contém uma mentira deslavada. E aí eu repito: é por ignorância ou más intenções?

Nenhum país subordina o reconhecimento de cidadania originária, isto é, desde o nascimento, a testes. Nenhum. Desafio que me apontem um. Como abordei neste presente texto, existe de fato o mecanismo da naturalização facilitada, mas que nada tem a ver com o reconhecimento da cidadania como previsto pelo artigo 1 da Lei 91 de 1992 e como já era previsto nas leis anteriores (Lei 555 de 1912 e no Código Civil de 1965).

É simplesmente lamentável que nosso direito como italianos nascidos no exterior esteja sempre à mercê da politicagem de turno, que não conhece cores ideológicas. A cidadania iure sanguinis deveria ser protegida por lei constitucional para que não fosse alvo de teratologias legislativas que nada mais são do que frutos de mentes baldias.


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